sábado, 30 de maio de 2015

A doçura do mundo


“por que se preocupar com o futuro 
se hoje pode ser doce? 
É tudo o que você tem, o presente” (p. 268). 

A doçura do mundo é um romance sobre luto, relações familiares e sobre os ruídos entre culturas diferentes e, talvez, gerações diferentes. Ao narrar a história de Tehmina, uma mulher indiana de 66 anos que acaba de perder o marido e está enfrentando todo o processo de reapreender a viver sozinha e a tomar decisões por conta própria, Thrity Umrigar constrói uma narrativa envolvente sobre família e superação. 

Depois da morte do marido, Tehmina foi passar uns meses nos Estados Unidos com seu filho, Sorab, que já está bem adaptado à cultura estadunidense e é casado com Susan, uma norte-americana branca, com quem tem um filho pequeno, Cookie. Além da saudade que sente do marido, e do sentimento de estar constantemente à deriva, Tehmina tem que lidar com outras questões nessa sua estadia com o filho: é necessário decidir se voltará a morar sozinha em Bombaim ou se ficará de vez nos Estados Unidos com a única família que lhe resta.

Apesar de ser acolhida pelo filho, pela nora e pelo neto com muito amor, às vezes as diferenças culturais se fazem notar, principalmente entre Tehmina e a nora. Em outros momentos, o próprio filho demonstra ter mudado, e as fissuras entre as duas culturas causam algum estranhamento. Mais do que isso, são gerações diferentes que passam a conviver juntas em uma mesma casa, perdendo com isso a privacidade que tinham. 

O olhar de Tehmina em relação aos Estados Unidos é sempre de encantamento, e incomoda um pouco certas afirmações como “é o melhor lugar do mundo para se viver” ou “o melhor e mais rico país do mundo”, que vão surgindo ao longo da narrativa sempre que Tehmina observa aspectos do dia a dia nos Estados Unidos, comparando-o com seu país natal. Em suas lembranças da Índia, exceto pelas pessoas que foram importantes em sua vida ou por algumas memórias afetivas de situações vividas lá, as descrições da cidade e do país são sempre negativas, o que já faz o leitor perceber qual será a sua escolha. É preciso ler o romance pensando sempre no lugar de fala dessa autora: uma indiana que há muito vive nos Estados Unidos, onde atua há um bom tempo em profissões “privilegiadas” como o jornalismo e o meio acadêmico, e que está bem inserida nessa outra cultura.

Mas Tehmina é essa personagem bem maternal da avó, que quer acolher as pessoas, alimentá-las com a comida que prepara com carinho (e essa tradição indiana de alimentar os outros como forma de demonstrar afeto fica muito presente no livro) que acaba nos conquistando por sua bondade e doçura e, em alguns momentos, ingenuidade, até. É bonita a forma com a qual Umrigar descreve a relação do filho com a mãe e com o pai pois, apesar dos pequenos conflitos, existe uma relação de respeito e admiração bem bonita entre eles. 

Quando as duas crianças que moram na casa vizinha começam a demonstrar que estão recebendo maus tratos por parte da mãe, Tehmina acaba por interferir na situação, na tentativa de ajudar as crianças, algo que destoa da indiferença típica dos moradores de grandes cidades dos Estados Unidos nos dias atuais. E aqui é importante estar atento aos estereótipos que podem circular nesse romance, afinal nem todo indiano se preocupa com os outros, nem todo estadunidense é indiferente. São essas observações entre as duas culturas que nos fazem o tempo todo pensar que a condição do imigrante é sempre um entre-lugar.

Mas, mais importante que isso, é que quando decide fazer o que seu coração julga ser o correto, independente dos olhares críticos que essa outra cultura lhe dará, é que Tehmina consegue se sentir mais confortável sendo quem é; é quando ela consegue reencontrar sua força e independência, mostrando que pode tomar decisões sozinha e continuar sendo feliz, apesar da saudade que sente do marido. Embora vivesse em um casamento por amor, o fato de sempre ter dependido do marido para tudo dificulta bastante a vida de Tehmina quando ela se vê tendo que recomeçar, o que gera um grande impasse não só para ela, mas para toda a família. Contudo, o importante é que ela recomeça e redescobre a sua força quando encontra a sua própria voz.

UMRIGAR, Thrity. A doçura do mundo. São Paulo: Globo Livros, 2015. Tradução: Fabienne Wyler das Mercês.

Thrity Umrigar nasceu em Bombaim, na Índia, em 1961. Mudou para os Estados Unidos aos 21 anos e trabalhou como jornalista por quase 20 anos. Atualmente dá aulas de literatura e escrita criativa na Case Western Reserve University, em Cleveland, e colabora com jornais como o The Washington Post e The Boston Globe.

Recebi este livro como cortesia da Editora Globo Livros.

quarta-feira, 27 de maio de 2015

Um poema de Manuel Bandeira

A Mário de Andrade Ausente

Anunciaram que você morreu.
Meus olhos, meus ouvidos testemunham:
A alma profunda, não.
Por isso não sinto agora a sua falta.

Sei bem que ela virá
(Pela força persuasiva do tempo).
Virá súbito um dia,
Inadvertida para os demais.
Por exemplo assim:
À mesa conversarão de uma coisa e outra.
Uma palavra lançada à toa
Baterá na franja dos lutos de sangue,
Alguém perguntará em que estou pensando,
Sorrirei sem dizer que em você
Profundamente.

Mas agora não sinto a sua falta.
(É sempre assim quando o ausente
Partiu sem se despedir:
Você não se despediu.)

Você não morreu: ausentou-se.
Direi: Faz tempo que ele não escreve.
Irei a São Paulo: você não virá ao meu hotel.
Imaginarei: Está na chacrinha de São Roque.

Saberei que não, você ausentou-se. Para outra vida?
A vida é uma só. A sua continua
Na vida que você viveu.
Por isso não sinto agora a sua falta.

Manuel Bandeira. Estrela da vida inteira. 20 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.

sexta-feira, 22 de maio de 2015

A Hora da História


Em A Hora da História, a escritora indiana Thrity Umrigar narra a história de Lakshmi, uma indiana de trinta e dois anos que mora há cinco anos nos Estados Unidos com o marido. Apesar do tempo, Lakshmi sente que não pertence ao lugar, não fala corretamente o idioma, sente saudades da família que ficou na Índia e, em profundo desespero e isolamento, tenta o suicídio. 

A imagem que temos dessa personagem desde as primeiras páginas nos sensibiliza diante do seu sofrimento, afinal a sensação de inadequação e isolamento é comum entre os imigrantes - temática frequente nos romances de Umrigar. Ao mesmo tempo, consideramos os aspectos culturais da Índia que contribuem significativamente para reiterar a violência contra a mulher. 

Após o casamento, quase sempre arranjado, as mulheres indianas passam a ser "propriedade" das famílias dos maridos (afinal, foram compradas com o dote pago por elas) e, assim como acontece com Lakshmi no romance, muitas vezes são proibidas de entrar em contato com a sua família, passando a ser uma mão de obra gratuita para as novas famílias às quais agora pertencem. Lakshmi trabalha noite e dia no restaurante do marido nos Estados Unidos, sem nada ganhar pelo seu trabalho, além de fazer todas as tarefas domésticas. Sem possuir nenhuma independência, ela, assim como muitas mulheres, vivem em situação de total subserviência e silenciamento.

Mas quando Lakshmi é levada para o hospital após a tentativa de suicídio, ela é atendida pela psicóloga Margaret, que logo percebe sua tristeza e solidão. Após algumas tentativas de conversa, a psicóloga e a paciente estabelecem uma comunicação e percebem que tem mais coisas em comum do que imaginam. Maggie, como passa a ser chamada, é casada com um intelectual e professor indiano que mora há anos nos EUA. Além de compreender algumas das tradições indianas por conta de seu próprio casamento, estranhas aos olhos dos estadunidenses, Maggie compreende a dor de Lakshmi por ter perdido a mãe tão cedo, algo que ainda é muito doloroso para ela mesma, assim como seu distanciamento da família, e acaba por oferecer sessões gratuitas para Lakshmi a partir daí. 

A relação psicóloga-paciente passa a ser de amizade, e Maggie interfere bastante na vida de Lakshmi, pois percebe que ela precisa de ajuda (nesse aspecto, creio que os profissionais da área podem se incomodar um pouco com a representação que a autora faz dos psicólogos, uma vez que a distância necessária entre paciente e psicólogo é completamente desconstruída no romance). Contudo, é justamente essa ajuda que provoca uma grande transformação na vida da protagonista, que passa a assumir as rédeas do seu destino, a trabalhar e ganhar seu próprio dinheiro e a lutar por mais respeito (e também um pouco de amor) por parte do marido. Alguns segredos, posteriormente desvendados em muitas dessas conversas entre psicóloga e paciente acabam por tentar justificar a violência verbal que a protagonista sofreu do marido nesses cinco anos de casamento, o que me incomodou bastante. Quando perguntada pela terapeuta se ela sofria agressões do marido, Lakshimi, assim como muitas mulheres mundo afora, não reconhece os abusos verbais e psicológicos que sofria do marido, que, com palavras abusivas, durante muito tempo a fez acreditar-se incapaz e inferior, a ponto de pensar em suicídio, como sendo uma agressão. Nesse sentido, o mito de que a violência só ocorre fisicamente pode ser reforçado por essa história se o(a) leitor(a) não estiver atento(a).

Entre traições, confusões, segredos e muitas histórias sobre as suas vidas e memórias, essas duas personagens acabam descobrindo mais sobre si mesmas e sobre a vida do que jamais imaginaram que fossem descobrir. A narrativa de Thrity Umrigar fala sobre o poder das histórias de curar mágoas, de nos aproximar dos outros, mesmo que eles sejam tão diferentes de nós, além de possibilitar um diálogo com as nossas próprias memórias. Uma escrita que continua sendo muito envolvente, que nos faz pensar sobre a condição dos imigrantes e, principalmente, das mulheres, sempre torcendo para que as personagens reconheçam a força que possuem.

UMRIGAR, Thrity. A hora da história. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2015. Tradução: Amanda Orlando.

Recebi este livro como cortesia da Editora Globo Livros.