domingo, 31 de janeiro de 2021

A vida não é útil

 


"Aqui, do outro lado do rio, há uma montanha que guarda a nossa aldeia. Hoje ela amanheceu coberta de nuvens, caiu uma chuva e agora as nuvens estão sobrevoando seu cume. Olhar para ela é um alívio imediato para todas as dores. A vida atravessa tudo, atravessa uma pedra, a camada de ozônio, geleiras. A vida vai dos oceanos para a terra firme, atravessa de norte a sul, como uma brisa, em todas as direções. A vida é esse atravessamento do organismo vivo do planeta numa dimensão imaterial. Em vez de ficarmos pensando no organismo da Terra respirando, o que é muito difícil, pensemos na vida atravessando montanhas, galerias, rios, florestas. A vida que a gente banalizou, que as pessoas nem sabem o que é e pensam que é só uma palavra. Assim como existem as palavras "vento", "fogo", "água", as pessoas acham que pode haver a palavra "vida", mas não. Vida é transcendência, está para além do dicionário, não tem definição."

Ailton Krenak. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. p.28

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Algum amor

 


Como essa pandemia da covid 19 será retratada na literatura?  Que histórias serão contadas? Essas são perguntas que a crítica literária tem se feito. Todas as dificuldades que este momento tem gerado precisarão ser digeridas e a literatura certamente poderá nos ajudar nessa travessia. 

Ao ler o mais recente romance de Luiz Biajoni, encontro com uma surpresa boa, uma possibilidade. Primeiro romance que leio que traz como plano de fundo a pandemia do coronavírus, Algum amor foi um pequeno acalanto pela ternura que dele emana. Neste momento de tantas perdas, em que nos damos conta da nossa vulnerabilidade e finitude, as lembranças são frequentes e a nossa busca por algum amor, seja ele dos amigos e família, agora fisicamente mais distantes, seja o dos livros, da música, do cinema e da arte tem sido a nossa estratégia de sobrevivência. No romance, as memórias de um amor são esse acalanto, são elas que permanecem nos livros e discos que alguém amou em vida. Os objetos contam uma história de cada um.

No enredo, um jovem escritor lança um novo romance, que narra a sua história de amor com uma mulher mais velha e inesquecível, anos antes. Como uma espécie de relicário, ele busca por meio das palavras registrar essas lembranças, em retribuição a um amor que foi tão importante em sua vida.  Com o romance publicado em meio à pandemia da covid 19, ele faz uma visita a Stella, que já vivia em isolamento em seus sessenta anos de vida, para lhe entregar um exemplar do livro. As memórias de como tudo aconteceu, do encontro e da conversa sobre os livros que despertaram sempre o interesse dos dois, dos ensinamentos que teve com ela sobre música e sobre o mundo, são intercaladas com acontecimentos estranhos desse ano muito atípico de 2020. Metaficcional por dialogar com a crítica no próprio texto, refletindo sobre a tessitura do livro e as críticas pertinentes que dele surgirão, e também inventivo por narrar um romance autoficcional dentro da própria ficção, Algum amor mostra um escritor consciente do seu papel de observador do mundo, e alguém à vontade com o texto literário, buscando outras formas de brincar com a linguagem. Como em outros romances do autor, as referências musicais estão presentes, compondo uma bela trilha sonora que nos diz que é "preciso apreender as pessoas. e as canções." (p. 55)

Apesar de ter sentido falta de uma exploração mais profunda da história de amor entre Luiz e Stella, destaco a sutileza com que Biajoni elabora esta narrativa de amor, ainda que breve, trazendo um pouco de nostalgia e uma vontade de "quero mais" no leitor. Algum amor é um romance gostoso de ler, uma ótima pedida neste finalzinho de ano, e que nos toca pelo olhar sensível com que os personagens são caracterizados. Dá para sentir o afeto.

Luiz Biajoni. Algum amor. Guaratinguetá: Editora Penalux, 2020.

Paisagem das horas

 (Elisa Lucinda)

Há semanas não escrevo.

Mas à noite

a paisagem da praia da Piedade,

vai me desculpar,

é estupidamente bela

O bom barulho

do vento das ondas,

sombras de palmeiras

tudo é pouco agora na visão das palavras

mas arrumo o quarto pra te esperar

Quero que você pense que eu sou organizada

que você pense

que eu sou uma mulher

que tem as coisas arrumadas.

Não adiantará!

Meu amor é bagunceiro por você

e desarruma o truque a cada olhada

Te amo, minha saudade

passo os dias nesse hotel à beira-mar

onde o mar é vizinho imponente, cacique

Você, meu homem,

é esperado em Jaboatão

onde tudo quer dizer também Recife

Há dias não escrevo

e quando é assim parece que perco a mão


Elisa Lucinda. euteamo e suas estréias. 6ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2007.


quinta-feira, 14 de maio de 2020

traduzindo poesia



Gansos assobiando
Mary Oliver (Tradução: Paula Dutra)

Você abaixa a cabeça para rezar ou
olha para o céu azul?
Faça sua escolha, as preces voam em
todas as direções.
Não se preocupe com a língua que você usa,
Deus certamente entende todas elas.

Até mesmo quando os gansos voam para o norte
fazendo um tumulto de tanto barulho,
Deus está ouvindo e entende.

Rumi dizia, Não há prova da existência da alma.
Mas não seria o retorno da primavera, e como
ela floresce em nossos corações, uma grande dica?

Sim, eu sei, o silêncio de Deus nunca é quebrado,
mas isso é mesmo um problema?
Há milhares de vozes, afinal.

Além disso, você não imagina (eu apenas sugiro isso)
que os gansos sabem tanto quanto nós disso tudo?
Então os escute e observe-os, assobiando enquanto voam.
Leve disso o que puder.

Mary Oliver. Devotions. New York: Penguin Press, 2019.


....
Whistling Swans
(Mary Oliver)

Do you bow your head when you pray or
do you look
up into that blue space?
Take your choice, prayers fly from all directions.
And don't worry about what language
you use,
God no doubt unterstands them all.

Even when the swans are flying north
and making
such a ruckus of noise, God is surely listening
and understanding.
Rumi said, There is no proof of the soul.
But isn't the return of spring and how it
springs up in our hearts a pretty good hint?
Yes, I know, God's silence never breaks, 
but is 
that really a problem?
There are thousands of voices, after all.
And furthermore, don't you imagine 
(I just suggest it)
that the swans know about as much as
we do about
the whole business?
So listen to them and watch them, 
singing as they fly.
Take from it what you can.

Mary Oliver. Devotions. New York: Penguin Press, 2019.

sábado, 18 de abril de 2020

Poema na quarentena

NADA DUAS VEZES (WISLAWA SZYMBORSKA)

tradução Regina Przybycien


Nada acontece duas vezes
nem acontecerá. Eis nossa sina.
Nascemos sem prática
e morremos sem rotina.

Mesmo sendo os piores alunos
na escola deste mundão,
nunca vamos repetir
nenhum inverno nem verão.

Nem um dia se repete,
não há duas noites iguais,
dois beijos não são idênticos,
nem dois olhares tais quais.

Ontem quando alguém falou
o teu nome junto a mim
foi como se pela janela aberta
caísse uma rosa do jardim.

Hoje que estamos juntos,
o nosso caso não medra.
Rosa? Como é uma rosa?
É uma flor ou é uma pedra?

Por que você tem, má hora,
que trazer consigo a incerteza?

domingo, 2 de fevereiro de 2020

Oração para Iemanjá



Por Cristiane Lisboa, escritora

"Rainha do mar, dona das águas, amiga da lua, senhora do meu cais, permita. Que meu processo evolutivo aconteça através da alegria. Em caso de dor inevitável, que exista colo e cafuné em abundância. Que minhas palavras sejam condutoras do teu afeto e meu trabalho seja ventilar o peito de toda gente. Que eu aprenda a ouvir. E não derrame verdades sobre ninguém. Que meu saber esteja a favor da leveza e da luz. Que eu possa oferecer sortilégios aos que amo. E tua proteção se estenda até onde eles estiverem. Que eu saiba navegar, Rainha. Em água mansa e revolta. Que meus escorpiões se transformem em pirilampos. E tuas flores me perfumem e me abriguem. Que em noite de lua eu seja tua sereia. E dance com o amor. Que eu seja boa amiga, boa filha, boa parceira. E tenha tempo para os afetos. Que a abundância entre em minha vida de maneiras surpreendentes e milagrosas. E a sincronicidade me visite. Diariamente. Que a cada passo, eu lembre: laço é mais importante que pódio. Liberdade é lei. Gargalhada é sagrada. No mais, gracias, Rainha. Por curvar meu orgulho diante da doçura, lavar meus medos, me ensinar o baile das estrelas. E permitir que dentro deste meu coração tão seu, seja possível ouvir teu mar. Amém. Odoyá."


segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Ethan Frome



Ethan Frome é um clássico da literatura estadunidense ainda pouco lido por aqui. Foi com alegria que encontrei esta edição da Editora Penalux possibilitando, enfim, o acesso aos leitores brasileiros a esse texto que é belíssimo.

Na orelha do livro, a escritora Maria Valéria Rezende o compara ao romance Vidas Secas, de Graciliano Ramos que, assim como em Ethan Frome, a natureza e toda a atmosfera ao redor dos personagens tem uma grande importância no livro, expressando muitas vezes os sentimentos que seus personagens não são capazes de dizer. Assim como em Vidas Secas, este é um romance com personagens de poucas palavras, mas cujos sentimentos são sentidos por nós, leitores, com tal universalidade que talvez seja esse o motivo de provocar em nós tanto encantamento.

Ao contrário de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, que se passa no calor do sertão brasileiro, Ethan Frome é ambientado no rigoroso inverno do norte dos Estados Unidos. Um lugar de onde a maioria das pessoas foge por conta do difícil e tempestuoso, para não dizer longo e cruel, inverno. Os poucos que ali residem nesse pequeno vilarejo inventado por Wharton tem suas próprias dores e dificuldades e, ao que tudo indica, ficam ali por não ter outra opção. 

Como em toda cidadezinha do interior, as histórias correm com bastante rapidez e é através dessas histórias, ouvidas aqui e ali, que a história central do personagem Ethan Frome vai se formando aos poucos. Ethan, esse personagem tão duro e silencioso, carrega em seu peito muitas marcas pelo sofrimento de uma vida com muitos problemas, que acabaram por o impedir de sair dali e de mantê-lo em uma vida de muito trabalho na fazenda tentando sobreviver. Seus sonhos e ambições foram podados por condições outras, causando frustração e tristeza, assim como uma grande melancolia. É um personagem triste que nos comove e, o que é mais interessante de ver no romance, que pouco a pouco vai revelando ser dotado de uma grande humanidade. É fácil se encantar por Ethan Frome, e seguimos torcendo até o fim para que ele encontre alguma felicidade em sua vida.

É um desses livrinhos curtos mas que carregam uma grande história. Vale muito a leitura.
Para quem quiser ler um pouquinho da história para ter certeza de que é um livro apaixonante, tem uma amostra AQUI.

WHARTON, Edith. Ethan Frome. Trad. Chico Lopes. Guaratinguetá, SP: Penalux, 2017.

***


Edith Wharton foi uma importante escritora estadunidense, com uma vasta produção e participação na cena literária. Nascida em 1862 em Nova York, Wharton se destaca como a primeira mulher a receber o título de Doctor Honoris pela Universidade de Yale, a primeira mulher a receber a medalha de ouro do Instituto Nacional de Artes e Letras pelo governo americano e a primeira mulher a receber o Prêmio Pulitzer de ficção em 1921. Mais informações: https://www.edithwharton.org/

A canção de Roland


O ano por aqui começou sem muita concentração para ler, então recorri a esta HQ que foi indicada por uma amiga querida como sendo um daqueles livros que são como um abraço. Só posso dizer que A canção de Roland foi realmente um abraço neste início de ano e me ajudou a sair de uma super ressaca literária. Aliás, os quadrinhos são sempre uma ótima opção para superar aqueles momentos em que empacamos nas leituras e precisamos voltar ao nosso ritmo.

Este é um quadrinho canadense e tem como temas principais a velhice, as relações familiares, o luto e o processo difícil que é perder alguém mais velho de nossa família. Mas só essas palavras não conseguem dar conta de todas as sutilezas que este quadrinho aborda, com bastante delicadeza. Acho que é nesse ponto que ele mais ganha: por falar de uma coisa simples que é o dia a dia de uma família, sua história, suas lembranças. É impossível que você, leitor, não vá se lembrar de alguma história de sua própria família ao ler este livro.

Apesar de narrar o processo de adoecimento do avô Roland por conta de um câncer até sua morte, e isso ser o responsável por muitos momentos em que nossos olhos ficam marejados durante a leitura, é também um livro com momentos engraçados dessa família, tão real e simples quanto a nossa.
E embora seja um livro que tem como tema central a morte de um ente querido, A canção de Roland nos faz pensar muito sobre a vida e as coisas que realmente importam quando nossa jornada por aqui termina (ou recomeça). Fiquei muito comovida com esta HQ, que me fez lembrar muito do meu avô e valorizar cada minutinho que eu tenho ao lado das pessoas que mais amo no mundo. É uma leitura que realmente vale a pena.

To the New Year

“To the New Year

– by W. S. Merwin


With what stillness at last
you appear in the valley
your first sunlight reaching down
to touch the tips of a few
high leaves that do not stir
as though they had not noticed
and did not know you at all
then the voice of a dove calls
from far away in itself
to the hush of the morning
so this is the sound of you
here and now whether or not
anyone hears it this is
where we have come with our age
our knowledge such as it is
and our hopes such as they are
invisible before us
untouched and still possible”

(Source: Present Company, 2005)

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Cem: o que aprendemos na vida


Os dias aqui no Brasil não andam muito fáceis e os livros são sempre um bom abrigo para recuperar as forças e a fé na humanidade. Cem: o que aprendemos na vida chegou para mim como um abraço, desses que trazem verdadeiro acalanto, por meio da indicação de uma grande amiga. Um livro ilustrado e bem curtinho que você lê em minutos, mas que você vai querer ter por perto para ler sempre que for necessário lembrar de coisas importantes, é assim que definiria esse livro, que pode passar despercebido por ser ilustrado (por que esse preconceito com os livros ilustrados, né?), mas não cometa esse erro: vale muito a pena. Basta dizer que tive vontade de ter muitas cópias dele para dar de presente para quem eu amo.


Em Cem: o que aprendemos na vida, cada página traz uma reflexão sobre o que aprendemos em cada idade, do momento que nascemos até completar cem anos e refletir sobre essa jornada, que por vezes nos passa batido, é uma daquelas formas gostosas de olhar para o nosso presente e vivê-lo com mais atenção, sem sofrer tanto pelo que passou ou pelo que virá, porque o que importa nisso tudo é mesmo nossa jornada nessa vida, as coisas que vivemos e aprendemos diariamente, por menores que sejam, as pessoas que amamos e que nos amaram também.

Se só puder ler um livro nesse final de ano, que seja esta bela reflexão sobre a vida. Garanto que vai valer a pena.

E aí, o que você aprendeu hoje?